A Polêmica da Cura Arcana

Por Estêvão Chaves Monteiro

A cura arcana é um tema polêmico que, vira e mexe, gera discussões acirradas nas comunidades de jogadores de D&D. Em junho de 2004, tive uma de minhas melhores dessas discussões, no fórum da Spellbrasil. Infelizmente, como o espaço do fórum é limitado e o tópico esfriou por alguns meses, o tópico foi automaticamente apagado pelo sistema. Não foi falta de aviso: o moderador Eltor me recomendou copiar o texto se eu temesse perdê-lo, mas fui negligente e "dancei". No outubro seguinte, a questão foi levantada no grupo Yahoo "Brasild20", e resolvi mais uma vez deixar registradas minhas fortes e elaboradas opiniões sobre ela. Desta vez, farei questão de garantir a preservação do material, aproveitando pra formatá-lo como artigo e espalhar por aí.

Me parece que, até a segunda edição, era muito mais raro se questionar a incapacidade de arcanistas curarem. Acho que a tendência surgiu com a terceira edição, a partir da qual os bardos adquiriram a capacidade de usar magias arcanas de cura inacessíveis a magos e feiticeiros (os arcanistas principais). Além disso, as magias de seres místicos como dragões passaram a ser tratadas como progressões de feiticeiro, e eles também ganharam acesso a magias de clérigo (inclusive de domínios!), o que põe mais lenha ainda na fogueira. Afinal... se existem versões arcanas de tais magias, por que raios magos e feiticeiros não podem aprendê-las??

Revisão de História e Conceitos

O fato é que magos e feiticeiros não curam somente por questões de tradição e função da classe num grupo. No D&D original, existiam apenas três classes: guerreiro, mágico e clérigo. O clérigo era um meio-termo entre o mágico e o guerreiro no sentido de que lutava e usava magias razoavelmente. Porém, a principal força de ataque físico era o guerreiro, e a principal força de ataque mágico era o mágico, de modo que o clérigo por definição nasceu como uma classe de suporte, e portanto sua lista de magias era voltada para cura e proteção. Até esse momento, o jogo era extremamente simples e estereotipado, não tendo, nem de MUITO longe, a flexibilidade e adaptabilidade do sistema atual. É interessante mencionar que, até a segunda edição de AD&D, os usuários de magia arcana eram oficialmente chamados de magic-users, não wizards, mages, sorcerers nem arcanists.

Até aqui, tudo bem. A explicação acima continuou em vigor em todas as edições do jogo. Mas até aqui, estamos falando só de papéis da classe no grupo, ou seja, questões de metajogo. Peço que deixem isso de lado enquanto lerem as idéias que explicarei a seguir, para retomarmos essa abordagem no final. A abordagem que vou fazer se refere unicamente aos conceitos de magia dentro do mundo de jogo.

Comecemos revisando os conceitos mais essenciais. O que é magia divina? O que é magia arcana?

Magia divina é aquela que um personagem adquire através da fé em alguma coisa; na maioria dos cenários, é "poder" concedido por uma entidade divina, mas o próprio Livro do Jogador também permite a opção de que o poder divino se origina de uma filosofia (isto é explicado em mais detalhes no Deuses & Semideuses). Esse poder tem ligação direta com o alinhamento e as esferas de influência dessa divindade ou filosofia. A aquisição do poder é consequência tão somente da fé e devoção do sacerdote (usuário de magia divina).

Magia arcana, na terceira edição, é toda e qualquer magia que um personagem aprende a manifestar pelo seu próprio esforço. Até a segunda edição, dizia-se que o arcanista precisava aprender e estudar constantemente fórmulas bizarras, padrões energéticos e mentais alienígenas à mente humana, e meditar profundamente pra imprimir na sua mente ("memorizar") esses padrões místicos que seriam posteriormente "liberados" através de gestos, vocalizações, componentes materiais e focos. Cada cenário dava sua própria explicação para a origem e mecânica da magia arcana, mas a idéia central era que a energia preparada pelo mago reagia com o "ritual de execução" para produzir efeitos sobrenaturais. É importante enfatizar que, embora tradicionalmente as magias arcanas sempre ficaram estereotipadas como magias de ataque, desde a segunda edição até a atual costuma-se dizer que as magias arcanas são um grupo extremamente heterogêneo, sem um tema nem propósito central. É preciso tomar cuidado com isso, porque o fato não é que as magias arcanas sejam destrutivas, é que nenhum sacerdote tem o potencial destrutivo que um arcanista pode OU NÃO adquirir. Se for contar, as magias arcanas destrutivas não devem ser 1/4 das magias arcanas. Olhem quantos encantamentos, ilusões, adivinhações e transmutações não-destrutivos sempre estiveram à disposição do arcanista, e comparem com o número de evocações destrutivas. O que eu quero deixar claro é que não é da natureza da magia arcana ser destrutiva; é da natureza da magia divina NÃO ser destrutiva (com suas exceções insubstanciais).

Resumindo, o arcanista aprende a manipular as forças místicas naturais através de seu próprio esforço na Arte. O sacerdote não aprende nada sobre o procedimento de preparação de magias; em vez disso, ele ora à sua divindade para que lhe abençoe com as magias já preparadas, como recompensa pela sua fé e serviço devotado. Magias divinas podem potencialmente fazer qualquer coisa, a depender da divindade, mas geralmente enfocam proteção e preservação. Naturalmente, magias divinas têm mais acesso às Forças dos Planos Externos (os deuses e tudo relacionado a eles) do que as magias arcanas, mas um sacerdote só usa as magias que a divindade lhe agraciar. Antes da terceira edição, todo arcanista poderia aprender qualquer magia arcana (a não ser que escolhesse se especializar), e até aí tudo bem.

As Magias de Cura

Agora, como é que um sacerdote cura? Muito simples: ele conjura a energia do Plano Positivo. Notem que o Plano Positivo é um dos seis Planos Internos: os Planos Elementais (Ar, Água, Fogo e Terra) e os Planos Energéticos (Positivo e Negativo). Energia positiva representa as forças da vida, e energia negativa representa as forças da morte. Os clérigos são os mestres na conjuração/canalização de energia positiva ou negativa. No entanto, os arcanistas sempre possuíram também uma poderosa gama de magias de manipulação de energia negativa, inclusive muitas magias exclusivas que nem o clérigo pode usar. Mas contam-se nos dedos as magias arcanas que mexem com energia positiva (e a única que me ocorre é o truque Disrupt Undead, da terceira edição). O que justifica isto? Por que arcanistas têm tanta facilidade em acessar a energia do Plano Negativo e tanta dificuldade de acessar a energia do Plano Positivo? Aliás, eu gostaria até de verificar se, antes da terceira edição, existia 1 magia arcana sequer que mexesse com energia positiva. Cosmologicamente, não faz sentido nenhum. Tudo bem que clérigos sempre tiveram mais foco nos Planos de Energia e nos Planos Externos, mas a partir do momento que os arcanistas têm vasto acesso a magias que usam energia negativa, torna-se incoerente que não tenham também à energia positiva, a menos que se estabeleça que magia arcana é coisa infernal, algo que seria absurdo na tradição de D&D.

Curar não devia ser nenhum desafio pra um arcanista. Basta conjurar energia do Plano Positivo, muito simples. Mesmo coisas mais específicas, como curar doenças, seriam triviais para alguém que pode alterar completamente toda a estrutura biológica de uma criatura (Polymorph). As únicas magias de Conjuração(Cura) que eu concordo que deveriam ser exclusvias de sacerdotes são as de reviver os mortos, porque aí já é um processo de ir buscar a alma do infeliz nos domínios da divindade dele. Aliás, mesmo isso é questionável, considerando que a decisão de aceitar a ressurreição é do falecido e não da divindade.

Costuma-se lançar argumentos como "a magia arcana é destrutiva no que diz respeito à essência do universo", ou "historicamente, a magia arcana está realmente ligada a estas questões mais elementais, mais ligada a esta capacidade de criar e destruir, enquanto a divina parece mais ligada a capacidade de criar e proteger." Da primeira, devo discordar solene e irremediavelmente, dado que a maioria esmagadora de magias arcanas não são destrutivas (particularmente, as de Encantamento, Ilusão e Adivinhação). Quanto ao segundo argumento, trata-se apenas dos estereótipos que foram forçados no mago e no clérigo em todas as edições, para que cumpram funções específicas no grupo. Mas a questão das funções no grupo meio que foge do escopo da minha linha de argumentação; meu objetivo é parar para analisar a natureza das magias e diante disso, os estereótipos desmoronam em paradoxos. Sim, a função do clérigo enquanto classe é proteger sua fé e suas divindades lhes concedem as magias apropriadas para esse cargo. Da mesma forma, o druida é uma versão diferente do clérigo, focada em proteger a natureza. As magias de paladino estão associadas às do clérigo, e as do ranger às do druida. Mas os arcanistas tradicionais são ESTUDANTES DE MAGIA. São sujeitos brilhantes e de sanidade duvidosa que estudam a manipulação das forças sobrenaturais do Universo, sem discriminar sua natureza. Minha opinião forte é que, se arcanistas podem usar energia negativa, não há sentido em não poderem usar também energia positiva com a mesma facilidade.

Curiosidades: Necromancia

Originalmente, as magias de cura pertenciam à escola da Necromancia. Isto porque, na segunda edição (não sei se antes também), Necromancia dizia respeito à vida e a morte, então mexia com o Plano Positivo, o Plano Negativo e o Plano Astral (talvez o Plano Etéreo também, mas não estou certo disso no momento). Na terceira edição, Necromancia passou a tratar apenas da morte, fazendo juz à raiz da palavra, que significa "divinação com os mortos" e as magias de cura foram alocadas para a nova subescola de Conjuração. Eu acho tudo isso muito estranho, ainda mais se você considerar as energias elementais. Conjurar energia dos planos elementais costuma ser Evocação. Reparem na salada de escolas envolvidas na conjuração de energia dos planos internos. Simplesmente bizarro.

Vale ressaltar que é importante distinguir a necromancia do arquétipo do necromante vil e asqueroso. A morte é uma parte natural do ciclo da vida, não há nada de inerentemente maligno nela. A necromancia trata de todos os aspectos da morte, alguns bem positivos até. O problema é que as magias mais conhecidas são justamente as que são inerentemente malignas, devidamente marcadas com o descritor Mal (ex.: Criar Mortos-Vivos). O Book of Vile Darkness e o Book of Exalted Deeds esclarescem com perfeição o que é realmente Bom e Mau no contexto de D&D.

Magos vs. Clérigos e o Bardo Aloprando no Meio

Até a segunda edição, dava pra fazer vista grossa à questão do Positivo/Negativo, porque existia uma separação muito bem-definida entre magias divinas e arcanas. Existia uma única lista de magias divinas, agrupadas em esferas, e cada classe divina tinha acesso a esferas específicas; era assim que se distinguiam as magias de um druida das de um clérigo, ou de clérigos de divindades diferentes. Era bem mais simples, coerente e elegante. Vale mencionar que, como nenhuma classe divina se dedicava exclusivamente a magia, só existiam 7 níveis de magias divinas (não existia nível 0). Um detalhe muito legal, porque reforçava o conceito de que o mago era o único cara que se devotava inteiramente ao estudo da magia, e por isso poderia aprender 9 níveis de magias. Além disso, significava que existia a magia arcana Desejo mas não a divina Milagre, então o mago era o maioral da magia, sem discussão. Mas também, a dificuldade de aprender magias arcanas era MUITO maior que a atual, e era bem mais difícil conseguir um valor de Inteligência suficiente pra aprender os 9 níveis de magia arcana.

O problema é que a WotC (Wizards of the Coast) resolveu avacalhar tudo na terceira edição. Agora, existe uma classe básica arcana que cura (que zorra é essa??), cada classe tem uma lista de magias diferente pra confundir a cabeça da gente (o lado bom é que fica mais fácil de equilibrar as classes e permite magias exclusivas pra dar um toque legal a cada classe) e uma porção de criaturas que lançam magias exclusivamente divinas como magias arcanas. Virou bagunça! Tipo, dragões sempre puderam usar magias arcanas e divinas, mas pelo menos não dizia que a magia divina estava sendo usada como arcana! E o bardo original, pelo que me falaram os entendidos, originalmente também curava, só que ele era como uma classe de prestígio pra magos/clérigos, mesclando magia divina com arcana, similarmente ao atual Teurgista Místico. Mas quando a WotC chega pra mim e diz que o bardo usa magias arcanas e pode curar mas o mago e o feiticeiro não podem... Eu respiro fundo e conto até 10. =P~

O fato do bardo curar em nenhum momento ameaçou o equilíbrio entre as classes, pois essa classe "é a segunda melhor em tudo e a primeira melhor em nada". O conceito do bardo é da mais completa versatilidade, o que o relega a um papel de apoio, sem realmente rivalizar com os nichos de nenhuma das outras classes. Mas ao se questionar a natureza da magia e sua relação com a estrutura cosmológica tradicional do jogo, não faz nenhum sentido. Eu, como DM, prefiro dizer que o bardo consegue acessar algum poder divino através da inspiração musical e mesclá-lo às suas artes arcanas e assim é que consegue lançar algumas magias divinas, porém tais magias ainda são divinas. Nas regras oficiais, um bardo pode escrever um pergaminho arcano de Curar Ferimentos Leves, que não pode ser usado nem por um clérigo nem por um mago!! Isso é absurdo!!

A questão dos dragões e outros seres do Livro dos Monstros já é bem diferente. Desde a segunda edição, alguns dragões podem usar magias divinas. Até aí, tudo bem, pois os dragões tradicionalmente são os seres mais fenomenais do jogo e são capazes de virtualmente qualquer coisa. Mas na segunda edição a distinção entre as magias arcanas e as divinas se aplicava a eles e na terceira não. Não apenas os dragões usam a progressão de magias do feiticeiro, mas também podem "usar magias de clérigo como magias arcanas"! Isso está dito explicitamente na descrição dos dragões verdadeiros e é um absurdo! Tudo bem que use a progressão do feiticeiro, pra simplificar. Mas isso significa que dragões também podem escrever pergaminhos que nem magos nem clérigos podem usar! Claro, se o bardo pode, nada mais justo que o dragão também possa, mas acho tudo isso errado mesmo. Se magias de clérigo podem ser usadas através de artes arcanas desvinculadas de forças divinas, então elas têm que poder ser aprendidas por arcanistas.

Considerações Finais

Fato: a WotC revolucionou o jogo, criando um sistema de regras e mecânicas lindas e maravilhosas. Mas esqueceram da ambientação, de explicar os conceitos do mundo do jogo (coisa que a TSR fazia com louvor) e agora tá parecendo videogame, que se preocupa mais em fazer coisas "iradas" do que COERENTES.

Eu não estou dizendo que magos e clérigos deveriam ser iguais. Eu acho que o mago deve ser a única classe totalmente focada em magia e com o potencial para aprender qualquer magia, enquanto que o clérigo deve ser um meio termo entre o guerreiro e mago e com um foco específico relacionado à divindade. A idéia seria agrupar todas as magias existentes em esferas e dar um número limitado pra cada classe aprender. No caso do mago, a classe teria acesso a todas as esferas, mas poderia ser necessário limitar o número de esferas por personagem, obrigando a especialização. Daí a gente poderia ter um mago elementalista explodindo tudo mas sem poder curar, e um mago curandeiro sem poder explodir tudo.

O shugenja, do Oriental Adventures (e republicado no Complete Divine), é um excelente exemplo do conceito que busco (mas é muito mais simples e limitado do que visamos). Para quem não conhece, o shugenja é como um feiticeiro divino que se especializa em um dos quatro elementos, descartando o oposto. Assim, um shugenja do fogo pode sair explodindo tudo com bolas de fogo, mas não pode curar como um shugenja da água pode, e vice-versa. Ou seja, a classe tem acesso a magias que tradicionalmente eram exclusivas a magos e clérigos, porém cada indivíduo precisa escolher uma especialização, abdicando de um grupo de magias. Se isso fosse adaptado para o mago e ao feiticeiro, as questões conceituais que tanto me incomodam seriam sanadas e, sendo bem-feito, o equilíbrio do jogo não estaria ameaçado. Haveria magos e feiticeiros mais eficientes em cura do que clérigos, sim, mas a idéia é essa. O clérigo ainda teria treinamento militar, poder contra mortos-vivos dissociado das magias, canalização espontânea de energia negativa ou positiva, magias relacionadas aos deuses e a capacidade de preparar magias sem fazer nenhum esforço pra aprendê-las. As duas classes continuariam coexistindo em equilíbrio, sem vir um "mamãe-eu-sou-game-designer" estuprar os conceitos do jogo. =P~

Espero ter conseguido expressar com clareza as minhas idéias e agradeço a todos que debateram o tema comigo, contribuíndo para o amadurecimento e refinamento dessas idéias. Será um prazer continuar a debater essas idéias com outros jogadores e DMs. Mas, por favor, lembrem-se que é uma discussão de conceitos in-game, não de mecânica de jogo. Minha filosofia é que a que a mecânica e o equilíbrio devem ser criados em função dos conceitos do cenário, não o contrário. Podem me contatar por e-mail através do endereço "estevao arroba gmail ponto com" (escrevo por extenso pra dificultar o trabalho dos spammers).